Risco, Clivagens e Alvoroços
 
A mais recente exposição no espaço Q3, da Quadrado Azul, “A.T.E. Vidal / Azorina vidalii (Watson) Feer”, ou simplesmente “Vidália”, aborda a instalação como instrumento para reflectir e pensar na reunião de diversas intenções e metodologias artísticas. André Sousa vem de uma experiência paralela ao circuito galerístico, nomeadamente do espaço pêssegoprásemana e mad woman in the attic dos quais é fundador. Estas salas, onde expôs significativamente o trabalho, são por si só características de um ambiente sujo e degradado que implicam na obra. Não estranha chegar a esta exposição e verificar que as paredes não foram deixadas a branco, estão revestidas a cor, verde e cinza, e cobertas por inscrições da rua das quais se apropriou. Sem estar explícito, a exposição assume um risco estabelecido no confronto duma experiência informal com o enquadramento galerístico. “Vidália”, uma espécie de planta endémica dos Açores — que na ilha do Corvo aparece inclusivamente no telhado de algumas casas. Sempre em habitats fortemente expostos — é título de uma exposição sobre dualidades. Na instalação está demarcada a fronteira trivial que aparentemente divide a cidade das serras, a polis do meio natural: logo na entrada somos absorvidos por um corredor de velocidade “Toy” que nos entrega ao segundo momento, o “Novo Mundo”.

A contemplação e abandono como requisitos para as experiências de percurso e de consciência geográfica, têm sido motivos de trabalho para o artista. Nesta exposição está circunscrito o olhar de quem caminha, de quem pára e visita a paisagem, seja urbana ou rural, e se integra na descoberta. No código da arte marginal, “Toy” é o apelido em tom irónico para quem se inicia na arte do graffiti. A forma como é mencionado, remete para a circulação e para a marca que assinala a revolta de uma identidade, mesmo que aqui desmentida pela apropriação. O artista coloca-se consciente entre esta iniciação às ruas e a apresentação formal no espaço eleito da galeria. Os graffitis citados na série de pintura, os que sofreram uma selecção apoiada no valor pictórico da sua versão original, justapõem a concepção rápida e o sentido programático de um modo industrial em contraste com a pintura a óleo e suas idiossincrasias. Em concordância com um modo contemporâneo nivela a pintura a qualquer outro médium. Na continuidade de “Toy”, aparece “Novo Mundo” na sala do fundo, onde uma espécie de altar à Vidália e aos Açores nos aproxima de uma dimensão simbólico-religiosa. Uma peça central, a mesa com depósitos de objectos preciosamente acumulados, desenvolve raios circunferênciais para as restantes obras. A diferença nítida entre os dois espaços concebidos é principalmente rítmica, se no primeiro momento a velocidade citadina é implícita no trajecto entre estantes metálicas e a parede de graffitis, o segundo momento desvela um estado mais contemplativo. Mas apesar da exposição nos engavetar num formato dual, muito vincado na própria montagem, apresenta brechas que nos abrem ao alvoroço.

Contaminações epidémicas. Palimpsestos que deixam acontecer a fusão dos diferentes layers. A procura de uma situação que desedifique a aparência. O maior interesse desta exposição está nas ligações que se efectuam entre os pormenores daquelas monumentais dualidades. Para as detectar tem que se estar nela com demora, as ligações e as brechas são tantas que chegamos a pensar que as dualidades estão lá apenas como pontos de referência para estas se estabelecerem. Os graffitis, que se desenvolveram da apropriação enquanto criação pictórica, assemelham-se às transformações morfológicas dos terrenos de origem vulcânica, e circunscrevem marcas da sua própria historicidade — a paisagem açoriana convoca constantemente a sua própria história e identidade, diz o artista. As fotografias demonstram a inserção insólita de componentes tecnológicos e artificiais, outras marcas humanas, no ambiente natural como parte integrante da paisagem. “The wrong eye”, um desenho feito com a representação de elementos naturais tem uma ideologia punk. Sem esquecer o desenho minucioso da teia, que pode ser a rede, como representação da outra estrutura subliminar da exposição: as ligações que diminuem clivagens, assim como da possibilidade de alvoroço segundo uma base aleatória. E o resto fica para descobrir.

Aida Castro

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